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Tribunal de Justiça Bandeirante decide o Tempo como fundamento do dano moral

Cena do filme "Back To The Future" (1985)
10/05/2021 por Sergio Iglesias Nunes de Souza
Direito civil e do consumidor. Tempo como critério de indenização.

O clássico filme da cultura pop americana "De volta para o futuro", "Back To The Future" (dirigido por Robert Zemeckis, 1985) retrata o personagem Dr. Emmett Lathrop "Doc" Brown [1] vivido pelo ator Christopher Lloyd como o cientista inventor da máquina do tempo construído em um automóvel Delorean, todo em aço inoxidável lançado em 1981 nos EUA.
 
A torre do relógio do fictício Tribunal de Justiça da cidade de Hill Valley da Califórnia dos EUA é atingida por um raio em 1955 e permite que o personagem Marty Mcfly (por Michael J. Fox) viaje de volta no tempo de 1955 para o ano de 1985, tornando-se uma das cenas épicas do filme e da trilogia, revisitadas em De volta para o futuro II e III, ambos lançados em 1989.
 
A questão da importância do tempo sempre foi temática por inúmeros filmes - há o clássico "A máquina do tempo", de 1961, dirigido por George Pal - e tem como referência a obra literária de mesma denominação, o romance de ficção científica escrito por H. G. Wells, em 1895.
 
O tempo é um fator de análise também pela física e guarda íntima relação com a teoria da criação do universo do "big bang", [2] bem como é mencionada na teoria da relatividade de Albert Einstein, ante a tese que sustenta a possibilidade de cômputo do tempo diferenciado ao homem em relação àquele que está na Terra, se permanecer no espaço por longo tempo, dentre outros reflexos.
 
No campo jurídico, o tempo também é considerado pela doutrina e pelos tribunais brasileiros.
 
Leonardo Garcia, citado por Vitor Guiglinksi:
 
"Muitas situações do cotidiano nos trazem a sensação de perda de tempo: o tempo em que ficamos presos no trânsito; o tempo para cancelar a contratação que não mais nos interessa; o tempo para cancelar a cobrança indevida do cartão de crédito; a espera de atendimento em consultórios médicos etc. A maioria dessas situações, desde que não cause outros danos, deve ser tolerada, uma vez que faz parte da vida em sociedade. Ao contrário, a indenização pela perda do tempo livre trata de situações intoleráveis, em que há desídia e desrespeito aos consumidores, que muitas vezes se veem compelidos a sair de sua rotina e perder o tempo livre para soluciona problemas causados por atos ilícitos ou condutas abusivas dos fornecedores. Tais situações fogem do que usualmente se aceita como normal, em se tratando de espera por parte do consumidor". [3]
           
Recentemente, decidiu, a par de outras decisões, o Tribunal Bandeirante:
 
"Apesar de não ter havido a efetiva inclusão de seu nome no rol dos maus pagadores, é incontroverso que a apelante sofreu um rol anormal de transtornos, por conta do erro sistêmico do apelado.
 
Não foi só a cobrança irregular que causou transtorno para a apelante. Supera o aborrecimento banal, daquele que infelizmente somos todos obrigados a nos confrontar de forma cotidiana, a demora na resolução do problema criado pelo próprio apelado. É isso que causa o dano moral. É, v. g., a perda de tempo com inúmeras ligações para o setor de atendimento ao cliente ou as idas ao estabelecimento bancário, onde nada é resolvido, situação que se caracteriza, "data venia", como descaso do apelado no que tange ao atendimento aos clientes.
 
(...)
 
Já se disse que a figura do dano moral "foi criada para compensar as vítimas das lesões não patrimoniais a bens jurídicos que merecem tutela". A expressão, salvo engano, foi utilizada por procurador de grande empresa de telefonia, em defesa apresentada em juízo da qual teve vista este relator. Pois bem, um daqueles bens que merece tutela é a paz de espírito que acaba sendo corroída não por mero melindre quando a pessoa tenta resolver um problema criado por um fornecedor de serviço de grande porte e acaba esbarrando na indiferença da corporação.
 
As pessoas perdem os seus preciosos minutos com a esperança, vã, de verem os seus problemas resolvidos. E, de forma muito usual, acabam sendo atendidas por um preposto da empresa que nunca resolve nada. Somente o fato de o cliente ter que perder tempo infrutiferamente para tentar solucionar um problema criado pela própria corporação, já é suficiente para dar ensejo a danos morais. Não danos de grande porte, mas daqueles que vão corroendo por dentro as pessoas, os consumidores, e que se somam ao longo do tempo para depois, de súbito, desembocarem em uma síncope nervosa ou em um ataque cardíaco fulminante e inexplicável. É adequado aqui lembrar o grande Chico Buarque: "pode ser a gota d'água". (Apelação 0001011-47.2011.8.26.0562, Relator Des. Castro Figliolia, 15a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, v.u., j. 04.05.2015) (grifo nosso)
           
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), não obstante completar 25 anos em 11 de setembro de 2015, há um quarto de século vigente e, sob o ponto de vista da relação da norma com a sociedade pode-se dizer que completará bodas de prata, lamentavelmente, ainda é alvo de inúmeras ilegalidades cometidas por prestadores de serviço, tais como operadoras de telefonia celular, bancárias, hipermercados, dentre outras atividades empresariais.
 
O tempo útil perdido é bem de natureza infungível, imaterial ou incorpóreo e suscetível de valoração econômica por arbitramento judicial, já que é um bem inestimável para o ser humano.
 
No mundo moderno, há uma maior importância do tempo do indivíduo que lhe é retirado por descaso e manobras do prestador do serviço ou fornecedor com o afã desmedido de esmorecer o consumidor na busca da efetivação de seus direitos.
 
Contudo, é preciso distinguir.
 
Se além do tempo perdido, implicar também em perda da paz de espírito, grave aborrecimento para resolver questões simples, como uma reclamação de cobrança indevida na conta telefônica, também é possível afirmar que exista dano moral por violar o bem da personalidade psíquica, isto é, elemento da integridade moral do ser humano.
 
A personalidade é um complexo de características interiores do indivíduo que se manifesta na coletividade ou no meio que o cerca, revelando seus atributos materiais e morais/extrapatrimoniais. Com efeito, no sentido jurídico, a personalidade é um bem, aliás, o primeiro pertencente à pessoa, sua primeira utilidade.[4]
 
Dentro dessa categoria de bem em que se inclui a personalidade existem subdivisões, conforme as classificações doutrinárias de bens, abrangendo a vida, a liberdade, a honra, a intimidade, o segredo, entre outros, compondo-se o que se denomina de personalidade.
 
Sobre esses bens gravitam todos os outros, dado o seu caráter de essencialidade e qualidade jurídica atribuída a um ser, conforme lembra o jurista italiano Adriano de Cupis. [5]
 
Nesse sentido, Maria Helena Diniz, seguindo Goffredo Telles Jr. e Ruggiero, assevera que:
 
"... a personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa. A personalidade não é um direito, de modo que seria errôneo afirmar que o ser humano tem direito à personalidade. A personalidade é que apoia os direitos e deveres que dela irradiam, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens". [6]
 
A personalidade se apresenta como um bem extrapatrimonial que é protegido pelo direito. Ela envolve outros bens ou conjunto destes que são tuteláveis juridicamente. Essa proteção que se dá a tais bens são os direitos da personalidade.
 
Limongi França dispõe que:
 
"São as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos". [7]
 
A personalidade é o conjunto de bens referentes à parte intrínseca do ser e, uma vez violados tais bens, o ordenamento jurídico confere proteção a esses mesmos bens. Todavia, esse ordenamento jurídico não precisa ser expresso ou taxativo, bastando, a nosso ver (ante a adoção da teoria jusnaturalista), a importância e a essencialidade desses bens.[8]
 
Por essa razão, o fundamento jurídico pela perda do tempo útil está na qualidade do tempo perdido, também merecedor de análise a sua extensão, em conformidade com a relação jurídica base existente, decorrente do descumprimento culposo por parte do devedor da obrigação (o inadimplemento, se for responsabilidade subjetiva) ou sem culpa (responsabilidade objetiva), como ocorre nas relações de consumo. Traduz-se em bem de natureza infungível, já que a sua importância é inegável no mundo contemporâneo que vivemos, em especial, com as elevadas tecnologias que exigem cada vez mais a excelência na produtividade no trabalho que, a esse passo, deve ser compensada de igual forma para atos que lhe foram privados de recreação e lazer, por exemplo, com seus familiares e amigos.
 
A retirada desse tempo útil, v.g., se um consumidor passar a somar sete horas de diversos telefonemas a fim de resolver divergência com o fornecedor, justifica o pleito de indenização. Contudo, bise-se, com fundamento no bem infungível, de valor inestimável, mas suscetível de valoração econômica, por arbitramento judicial fundamentado nos critérios utilizados ao caso concreto.
 
E, por vezes, essa simples circunstância caracteriza o dano moral "in re ipsa",[9] isto é, independentemente de prova, já que se evidencia o dano moral pelo simples relato dos fatos incontroversos ou notórios. E, nesta perspectiva, deve o "quantum" compensatório e punitivo (teoria do desestímulo e caráter pedagógico) ser fixado considerando-se não só o tempo útil perdido, mas os reflexos ao bem extrapatrimonial da personalidade envolvido: o estado emocional e abalo psíquico, ainda que momentâneo.
 
Não se autoriza mais, nos dias de hoje, indicar certos fatos como mero aborrecimento, insuscetível de indenização, pois, tal tese estimula a ineficiência de fornecedores e prestadores de serviços no Brasil. Ainda, estimula o número de demandas no Poder Judiciário, impede a conciliação, mediação ou arbitragem, gerando um prejuízo não só a um consumidor, mas a todo o sistema econômico e judicial.
 
A busca por um processo judicial célere e eficaz, a redução das demandas, inclusive, de menor complexidade, implicam no dever ético e cultural de uma nova postura de fornecedores e prestadores de serviços, de modo a contribuir antes mesmo da relação tornar-se litigiosa, para a solução das divergências com seus consumidores. Devem aquelas adotarem posturas pro ativas e, quando reconhecida a sua falha no procedimento e no atendimento ao consumidor, prontificarem-se a compensarem efetivamente os danos de modo sincero e razoável a fim de levar a cabo o conflito de interesses.
 
É desse modo que se buscará soluções ágeis, pois a crença de que somente as mudanças legislativas (processuais) resolverão o problema do tempo na demora judicial induz o legislador a estabelecer regras que renunciam, total ou parcial, as garantias constitucionais, como o direito de ação, a ampla defesa e o contraditório. Impõe-se a hipervaloração da padronização como um dos mecanismos solucionadores que, contudo, pode guardar íntima relação com o autoritarismo. De outra banda, a conciliação, mediação e arbitragem devem sempre ser estimuladas, reduzir a cultura do litígio, mas essa postura não deve partir apenas de um dos polos das relações jurídicas. Não é assim que resolveremos o problema do Tempo que o sistema judicial brasileiro também enfrenta.
 
Todos temos o nosso próprio tempo, é inestimável e valioso para ser perdido com inutilidades, assim como deve ser otimizado por um processo de racionalização cultural.
 
O tempo de hoje é escasso assim como a água e, pior, não há uma máquina do tempo capaz de trazê-lo de volta, apenas criada na ficção científica e literatura. E, curiosamente, a Torre do Relógio do filme "Back to the future" é justamente a de um Tribunal de Justiça. O que isso quer dizer? Nada. Mas o tema de como destinamos o nosso tempo merece uma séria reflexão.

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[1] O sobrenome do personagem lido inversamente significa Dr. Doc Brown Portal do Tempo, considerado pela Revista "Empire" no 76o lugar dos 100 maiores personagens de todos os tempos do cinema.
[2] Intitulada inicialmente de teoria da hipótese do ato primordial de Georges Lemaítre e desenvolvida por outros, constatada segundo evidências científicas recentes.
[3] Fonte: http://jus.com.br/?/danos-morais-pela-perda-do-tempo-util-u?
[4] TELLES Jr., Goffredo. Direito subjetivo. Enciclopédia Saraiva de Direito. v. 28:135.
[5] CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Tradução por Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro, São Paulo: Morais Editora, 1961, p. 13.
[6] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, cit., v. 1, p. 83.
[7] FRANÇA, Limongi. Direitos da personalidade, Enciclopédia Saraiva de Direito, v. 28:140.
[8] FRANÇA, Limongi. op. cit., v. 28:140. Vê-se que Limongi França define os direitos da personalidade como "faculdades", pois, somente ao interessado ou o titular desse direito, cumpre buscar a sua proteção jurídica aos aspectos da sua própria pessoa. Assim, esboça-se desde já uma das características dos direitos da personalidade que é a titularidade e, como consequência, a irrenunciabilidade deste direito pelo seu titular.
[9] Enunciado 455 da Jornada de Direito Civil.
 

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