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Impenhorabilidade do imóvel do fiador e penhora de imóvel caucionado nas locações imobiliárias

05/05/22 por Sergio Iglesias Nunes de Souza
Direito civil. Impenhorabilidade do imóvel do fiador. Diferenças entre fiança e caução.

Breve síntese de artigo publicado na coletânea da Revista dos Tribunais n. 957, julho de 2015. [1]
                                                                       
Embora haja posição parcial da jurisprudência com repercussão geral, inclusive, do STJ e do STF, bem como existente Súmula do Tribunal Bandeirante no sentido de que o único imóvel do fiador seja penhorável por dívidas de contrato de locação e também do STJ na Súmula 549, sempre defendeu-se, respeitada a posição em sentido contrário, de forma diversa.

O único imóvel do fiador não poderá ser modalidade de garantia válida para assegurar dívidas oriundas de contrato de locação, especialmente, se for hipótese de dívida de locação de natureza comercial/empresarial.

Isso porque, há afetação do bem da moradia e a fiança é uma modalidade de garantia fidejussória, logo, pessoal e sem individualização do objeto. E não se admite interpretação extensiva de modo a incluir como penhorável o bem de família.

O inciso VII do art. 3o da Lei 8.009/90 merece ser extirpado de nosso ordenamento jurídico.

Se há proteção de bens pessoais do devedor principal, como bem de família, o mesmo  efeito deve ser atribuído ao único imóvel do fiador, por ser contrato acessório, aplicando-se a teoria da gravitação jurídica.

Admite-se, com reservas, enquanto vigente o inciso VII do art. 3o, Lei 8.009/90, a penhora do único imóvel residencial do fiador se for para a garantia de contrato de locação residencial, já que este é um instrumento de acesso à moradia e o contrato locatício permite a muitas famílias o acesso a um imóvel, sem a necessidade de adquirir a sua propriedade, já que esta é uma situação econômica para poucos privilegiados na atualidade. Assim, prepondera o interesse público sobre o particular, neste entendimento. Mas deve o Estado brasileiro adotar medidas legislativas progressivas de acesso à moradia de modo a avançar em outras soluções a fim de que essa hipótese seja também excluída.

A modalidade de garantia em que seria, tecnicamente, admissível a penhora do imóvel do garantidor de contrato de locação de imóvel é a caução imobiliária, desde que realizada por instrumento público, ainda que para efeitos somente entre as partes. Caso haja interesse de oponibilidade perante terceiros interessados deverá haver a respectiva averbação no fólio real respectivo. Essa é uma nova proposta legislativa.

A natureza jurídica da caução do inciso I do art. 37 da Lei 8.245/91 não se confunde com as demais modalidades de garantia previstas no art. 37, tais como a fiança, o seguro fiança locatícia e a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimentos.

O instrumento particular que eleger modalidade de garantia só poderá fazer apenas uma dentre estas, sendo vedada a sua cumulação (art. 37, parágrafo único da Lei 8.245/91). Daí porque a interpretação da distinção entre caução e fiança é de rigor, por força do princípio da especialidade estabelecido na lei de locação.

A modalidade de garantia de caução é regida pelo art. 38 da Lei 8.245/91.

A caução permite a retirada do caucionante do exercício da habitação que incide sobre determinado imóvel específico expressamente dado em garantia. Aqui, aplica-se a liberdade contratual, a autonomia da vontade sobre a disposição de um determinado bem individualizado, obedecida determinada forma legal (instrumento público) e, para efeitos perante terceiros, averbado no fólio real. Logo, não poderá ser alegada impenhorabilidade do imóvel caucionado sob o argumento de bem de família ou à luz do direito à moradia, por afrontar ao princípio do "venire contra factum proprium" e ao princípio da boa-fé objetiva contratual, fundamento basilar da eticidade.

Mas esse mesmo entendimento não se aplica à fiança.

A fiança é fidejussória, pessoal e, portanto, quaisquer bens do fiador podem ser objeto de penhora, salvo os declaradamente impenhoráveis pela Lei 8.009/90, bem como o seu único imóvel de natureza residencial, por atender ao direito à moradia do indivíduo, sendo este um direito social, em conformidade com o art. 6o da CRFB/88. Direitos sociais não se prestam apenas a determinado grupo social em extrema miséria e, por vezes, com caráter paternalista e/ou como pano de fundo de bandeira partidária política, mas a todos, tais como outros estabelecidos no art. 6o. É de eficácia imediata (art. 5o, parágrafo 1o da CRFB/88) vertical exigível do indivíduo perante o Estado também na função legislativa, bem como horizontal, isto é, oponível perante particulares em contrato de fiança e locação.

O Estado brasileiro ao incluir o inciso VII da Lei 8.009/90, através da Lei 8.245/91, criou norma que implica em retrocesso ao direito à moradia que também é direito fundamental e humano, veda o acesso do fiador ao seu próprio imóvel, muitas das vezes, para atender apenas a fins econômicos do credor de locação de natureza comercial/empresarial.

É recomendável, igualmente, que o tema seja debatido perante a sociedade, em audiências públicas para que haja equilíbrio de direitos e não prepondere apenas o interesse econômico, já que há diversas maneiras de regulação do mercado imobiliário, sem a necessidade de comprometer o único imóvel do fiador de natureza residencial, com maior coerência com o texto constitucional no disposto no art. 6o da CRFB/88.

Norma infraconstitucional não pode mitigar ou reduzir o acesso à moradia, sem a plausibilidade dos direitos em confronto, por desatender ao mandamento constitucional, inclusive, ante a inegável hierarquia das normas, reconhecida também por Miguel Reale, mesmo no desenvolvimento de sua teoria tridimensional do direito. Ainda que norma de conteúdo também principiológico, o retrocesso ao acesso à moradia é vedado ao Estado brasileiro.

A mera adoção de uma solução pragmática na interpretação da penhorabilidade do único imóvel do fiador apenas pela análise econômica e a sua repercussão nesse entendimento ao mercado imobiliário não equaciona as normas jurídicas, seja do Código Civil de 2002, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e, inclusive, implica em retrocesso ao desenvolvimento desse direito também fundamental à luz dos direitos humanos. Não é assim que deve ser solucionado este difícil e polêmico problema social.

O Código Civil é a constituição do cidadão, como abertamente mencionava Miguel Reale. O contrato de fiança em relação locatícia, assim como os contratos de financiamento habitacionais são instrumentos de acesso à moradia e quaisquer normas que impliquem em seu retrocesso, implicam em violação das normas constitucionais e fundamentais (direitos humanos) vigentes.

A conclusão é no sentido de que o único imóvel do fiador é impenhorável por constituir bem de família e envolver o direito à moradia, situação diversa que seria com a caução que, neste particular, afetaria somente o direito de habitação sobre o imóvel, desde que obedecida certa formalidade. Entende-se, ainda, que a sociedade merece um novel legislativo para a adequação dos institutos jurídicos envolvidos à luz dos Tratados de Direitos Humanos, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e em conformidade com o atual Código Civil de 2002. 

Deve-se adotar legislação alternativa para a solução das garantias locatícias residenciais e empresariais/comerciais, em que o brasileiro, com a criatividade que lhe é culturalmente peculiar, mesmo nas dificuldades, tem condições de fazê-lo. Atendendo, entretanto, as normas constitucionais vigentes e a delimitação das modalidades de garantias estipuladas pela Lei 8.245/91, sendo vedada qualquer interpretação normativa que permita a cumulatividade daquelas, por consistir em ilícito civil e penal.

Apesar de tudo isso, em outubro/2015, o STJ editou a Súmula 549: "É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação" (REsp 1.363.368). Contudo, em nenhum momento foi enfrentado o tema da distinção entre a caução e fiança, cuja referência, se adotada com tecnicidade, implicará em inevitável resultado de entendimento diverso. Ademais, sob o prisma de melhor solução econômica, atualmente, tem-se notado ante a análise da experiência do mercado imobiliário que o mecanismo mais recomendável para a garantia de crédito é a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, em que é possível reaver o valor após o término do contrato, se cumprido. O tema merecia uma análise mais aprofundada e a decisão de origem daquele Recurso Especial do Egrégio TJMS era acertada. Mantemos nossa firme posição que o bem de família para questões de fiança, especialmente, de contrato comercial, é impenhorável, bem como inconstitucional. E, ainda, é solução legislativa atécnica, infeliz economicamente e implica em retrocesso a direito fundamental.
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[1] Texto das conclusões de Sergio Iglesias Nunes de Souza publicado na coletânea: São Paulo: Thompson Reuters Revista dos Tribunais, n. 957/2015, p. 37-84, edição de julho de 2015, título do artigo: Exclusão do imóvel do fiador da penhora e o direito à moradia. Diferenças ontológicas de fiança e caução na Lei 8.245/91. No referido artigo é feita uma análise histórica e acadêmica do tema com propostas de alteração legislativa. Material completo disponível na área restrita aos nossos clientes. 

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