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Direito à moradia e de habitação

03/01/2021 por Sergio Iglesias Nunes de Souza
Direito civil e constitucional. Direito de habitação e à moradia. Entrevista.

Entrevista originalmente concedida à Carta Forense (www.cartaforense.com.br)
 
Como o senhor nos define direito à moradia e de habitação? Há diferença?
Em uma visão civil-constitucional, o direito à moradia define-se como um bem jurídico pertencente à pessoa. É, sob o aspecto do direito civil, um bem da personalidade que compõe o postulado (ou princípio, conforme a linha hermenêutica adotada) da dignidade da pessoa humana. Sob o aspecto constitucional, define-se como direito social atribuído pelo art. 6º da CR/88. Para nós, distingue-se do direito de habitação. Este incide sobre um bem imóvel como instrumentalização do direito à moradia. Pode ser gratuito ou oneroso, com caráter de direito real ou de direito pessoal. A importância prática da distinção é que a perda ou suspensão do direito de habitação deve se dar observado a tutela jurídica da moradia, como no despejo com prazo digno de desocupação; a inviolabilidade do domicílio nos termos da CR/88 como regra, sendo sempre uma medida de exceção, em virtude de um bem jurídico de maior envergadura no caso concreto, como, por exemplo, o flagrante próprio de um crime permanente, como o ter em depósito drogas em uma residência para fins de comércio; a invasão de domicílio pela autoridade policial quando há um crime em curso, como na violência doméstica. Mas todas essas situações são excepcionais (inciso XI, art. 5º CR/88), incluído o desastre e prestação de socorro, pois, mesmo nelas, a invasão, de um modo geral só se justifica quando haja extrema urgência e, não havendo, de modo fundamentado pelo magistrado e durante o dia.

Quais são as características do direito à moradia sob o enfoque aos direitos da personalidade?
O direito à moradia tem os mesmos atributos de outros bens da personalidade, tais como a intimidade, a honra, a imagem, a integridade física, etc. São características a irrenunciabilidade, disponibilidade relativa, universalidade e a imprescritibilidade. Logo, o bem jurídico da moradia merece proteção preventiva e repressiva, esta última, com caráter indenizatório por danos morais, conforme a hipótese. Quando se fala em direito à moradia como bem da personalidade trata-se de uma interpretação que, em outras palavras, buscamos a eficácia horizontal das garantias constitucionais, quando sustentei essa posição já há dez anos, antes mesmo do advento da EC 26/2000 ao art. 6º da CR/88. O direito à moradia, como qualquer outro bem da personalidade, quando violado, pode ser sob o aspecto físico (ex: despejo) ou moral (ex: violação de domicílio fora das hipóteses permitidas na CR/88). Moradia, habitação e propriedade são institutos diversos.

Como o direito à moradia e habitação se entrelaçam com os direitos humanos?
O direito à moradia tem previsão também convencional. É reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos; Convenção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica, inclusive, na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento em 1986, na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial, na Convenção sobre os direitos da criança e na Declaração sobre assentamentos Humanos de Vancouver e Estatuto de pessoas com deficiência (equiparação constitucional). Frise-se que a República Federativa do Brasil, art. 4º, II, CR/88, deve proteger, incentivar e criar normas jurídicas que impliquem em ampliação de acesso à moradia (princípio da prevalência dos direitos humanos e do desenvolvimento). Nesse sentido, quanto ao reconhecimento desse dever da República Federativa do Brasil pronunciou-se o decano Min. Celso de Mello, RE 407.688-8, em 2006, no STF.

O que pode ser dito sobre o dever do Estado brasileiro em face do direito à moradia?
Quanto ao aspecto da criação de normas jurídicas que facilitem o acesso à moradia, em nosso entender, o Brasil não tem cumprido os tratados. O ponto nevrálgico normativo do sistema financeiro imobiliário no país está na Lei 10.931/2004, art. 46 ao 52. A lei proibiu nos financiamentos imobiliários qualquer estipulação contratual por equivalência salarial do mutuário. Critério este conquistado, pasmem, no período obscuro da ditadura, com a Lei 4.380/64 criadora do SFH - Sistema Financeiro da Habitação. Causou-me decepção a Lei 10931/04, principalmente, quando veda a estipulação desse critério em contratos que, por si só, são por adesão. Ou seja, ao proibir aquele critério, amordaçou qualquer interpretação de aplicação da equivalência salarial, notadamente, aos novos contratos. Com a referida lei há livre contratação de critérios de reajustes de oferta pelas instituições financeiras. A lei é um triste exemplo de retrocesso de conquista ao acesso à moradia e da quebra da equivalência contratual antes existente.

O que o senhor poderia nos falar da Lei 10931/04?
A partir de 2004, realmente, ampliou-se a oportunidade de financiamento habitacional no país. Porém, é temerosa pela duvidosa capacidade de solvência dos mutuários ao longo dos anos, especialmente, do saldo devedor, com os livres critérios agora autorizados pela Lei 10931/2004, como as taxas de juros, tabela Price, fator de reajuste por índices atrelados à poupança, enquanto o mutuário sofre pífios reajustes salariais, já comprometido com os seus encargos familiares. A referida lei cria, ainda, situações antagônicas, como a obrigatoriedade de depósito dos valores controversos em juízo para discutir o contrato, afrontando os princípios elementares das regras gerais do Código Civil de 2002, inclusive, do princípio da função social desses contratos. Trata-se de extrema segurança concedida às instituições financeiras, considerando que o imóvel é dado em garantia da dívida pela hipoteca. Há adoção da cláusula comissória, já também permitida em contratos de alienação fiduciária em garantia, quando, a regra geral é a sua não adoção, conforme o art. 1.428 do CC/02 nos direitos reais de garantia. Além, ainda, de proibir-se a venda do imóvel, ao contrário do disposto no art. 1.475 do CC/02. Ou seja, a Lei 10.931/04 é norma especial, com gravame ainda maior à parte vulnerável: o mutuário.

Quais são suas impressões sobre a Lei 12.424/11 que trata do contrato de financiamento habitacional como programa de acesso à moradia?
A nova Lei 12.424/11 que institui o Programa "Minha casa, minha vida" - PMCMV, a imóveis urbanos e rurais, a pessoas cuja renda não ultrapasse o valor R$ 4.650,00, basicamente, dispõe sobre a possibilidade de obtenção de recursos através da União, por meios de subvenção econômica através do BNDES, pelo Fundo de Arrendamento Residencial - FAR e Fundo de Desenvolvimento Social - FDS. O objetivo da lei é promover a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais ou a requalificação de imóveis urbanos. Quanto à finalidade da norma, a referida lei merece aplausos. Quanto ao critério de forma de restituição do mútuo, não vislumbro um grande poder de efetivação aos seus beneficiários, já que o critério de restituição pelo mutuário está maculado desde 2004, pela Lei 10.931/04. A Lei 12.424/11 tem conteúdo liberalista, idêntica à norma anterior, isto é, não determinou a forma de critério de reajustes das prestações e saldo devedor, cabendo apenas à instituição financeira fixar conforme seus interesses. Neste aspecto mais profundo, embora pareçam superficialmente normas de instrumentalização de acesso, são normas jurídicas que permitem o comprometimento da capacidade de solvência do mutuário. Financiar com margem de lucro é tolerável, mas deverá o Poder Judiciário coibir os abusos (ativismo judicial), diante da flagrante abstinência legislativa neste particular.

O que é o direito à moradia nas relações negociais lesivas?
Quando estabelecido um contrato de financiamento habitacional ou uma locação residencial, por exemplo, temos que observar que tais contratos buscam o bem da vida que é a moradia. Se um determinado contrato de financiamento estabelece uma dívida desproporcional ao valor do imóvel e ao prazo financiado, neste caso, entendo ser possível a aplicação do instituto da lesão, conforme o art. 157 do CC/02. Isso porque a desproporcionalidade existe desde o início, na medida em que se estabelece critérios econômicos de reajustes que só se desvendam ao longo do tempo, principalmente, em relação ao quanto já foi pago, bem como o saldo devedor ainda existente. Porém, tudo diante dos critérios de reajustes eleitos que, comumente, o mutuário padrão e, por vezes, uma pessoa graduada em ciências contábeis não conseguem perceber no ato da assinatura do contrato. Seria importante a tentativa de conservação desses contratos, objetivando a proporcionalidade das obrigações contratuais, diante do direito à moradia envolvido, a centralização das atividades da família, influenciando no trabalho, na educação e no lazer.

Sendo a moradia um bem da personalidade, é possível a contratação, a capacidade de disposição?
A moradia é irrenunciável. O fato de ser irrenunciável não significa que não haja uma relativa capacidade de disposição. Há possibilidade de disposição do direito de habitação. Os limites à liberdade de contratar ocorrem naturalmente nos direitos da personalidade, sem que isso ofenda a própria dignidade humana. Aqui há um debate poroso. Por exemplo, o direito à imagem pode ser objeto de disposição em contrato, mas não pode ser permitido o direito ao seu uso alheio por prazo indeterminado, por ser visível a abusividade dessa cláusula. De igual forma com outros bens da personalidade. É essa capacidade de disposição relativa que compreende o direito de habitação em face do direito à moradia.

Qual sua opinião a respeito do Decreto-Lei 70/66 que permite a execução extrajudicial do imóvel financiado sem acesso ao Poder Judiciário?
Minha firme posição é no sentido de sua não recepcionalidade pela CR/88. O referido decreto-lei é norma que permite a autotutela, somente admitido em casos extremos, como o corte de árvores limítrofes previsto no CC/02. Não é possível colocar na mesma balança da autotutela o corte de galhos, v.g., do imóvel vizinho, com o direito à moradia. A permissividade de ingresso de medida cautelar em juízo sustando os efeitos do leilão extrajudicial não convalida a norma sob o aspecto formal e material. Se assim for, todo o exercício de autotutela estaria legitimado, já que a todos pertencem o direito público subjetivo da ação. E o Estado chamou para si a solução dos conflitos, como regra. Historicamente, esse decreto foi concedido pelo governo ditatorial, por acordo, diante da criação do SFH e a equivalência salarial trazida pela Lei 4380/64, esta indesejável, desde aquele tempo, pelas instituições financeiras. Hoje, não há a equivalência salarial, mas o decreto-lei é ainda vigente. O STF, até o momento, por maioria, entendeu que o DL 70/66 é constitucional. 
O tema está em calor de debate novamente no STF, através do RE 556520, com repercussão geral reconhecida, com votos de divergência entre ministros, ainda não concluído o julgamento até o presente momento. Se o STF decidir pela sua constitucionalidade, como matéria de repercussão geral, os juízes de instância inferior e tribunais seguirão esse mesmo entendimento.

Seria possível uma pessoa invocar o direito à moradia em face de outros direitos em conflito?
Perfeitamente, conforme a hipótese. Há um julgado muito interessante proferido em uma ação civil pública (apelação 0004307-40.2004.404.7200/SC), pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Rel. Juiz Federal Jorge Antonio Maurique, em que se permitiu que uma senhora, paraplégica, mantivesse seu casebre construído ao longo dos anos mesmo em uma Área de Preservação Permanente (APP), diante do direito à moradia e da desproporcionalidade da sua retirada diante da pouca lesividade à coletividade. Não obstante tratar-se de área de preservação permanente, sendo proibida qualquer construção, tolerou-se em nome da dignidade da pessoa humana atrelado ao direito à moradia. Em geral, a adoção de direitos absolutos ecoa como uma postura autoritária. Creio que só há um direito absoluto que prepondera sobre todos os outros direitos: o direito de não ser torturado em qualquer hipótese estabelecido na CR/88 e normas internacionais e, que hoje, discute sobre a sua possibilidade o direito norte-americano diante do terrorismo. Posição essa perigosa e emotiva. Mesmo a vida, em especiais condições, no direito brasileiro, deixa de ser criminalizada, como no caso do aborto sentimental ou, ainda, do aborto de feto anencefálico, matéria esta polêmica também a ser decidida pelo STF.

Considerando que o STF decidiu pela penhorabilidade do único imóvel em fiança nas locações, como o Sr. analisa a questão do direito à moradia?
Como dito anteriormente, não há direitos absolutos, nem mesmo o direito à moradia. O art. 3º da Lei 8009/90 estabelece as diversas hipóteses de perda do direito de habitar, hipóteses essas em que outros direitos de maior envergadura em conflito prevalecem, inclusive, com regras visando proteger o acesso à moradia. O que o STF decidiu é que a penhora do imóvel em fiança nas locações é constitucional no RE 407.688-8, de 2006. Contudo, acredito que o STF ainda não teve a oportunidade de adentrar na distinção quanto à natureza do contrato de locação. Considero, ainda, que a fiança dada em contratos de locação residencial é constitucional, na medida em que tais contratos permitem o acesso à moradia, agora sob a vertente da coletividade. Essa seria uma interpretação conforme do inciso VII do art. 3º da Lei 8009/90. Todavia, penso ser de duvidosa constitucionalidade a perda do imóvel dado em fiança nas locações de natureza comercial, ainda que consentida (diante da irrenunciabilidade, como dissemos alhures) pois há direitos em conflito, aqui, de um lado, o mero interesse comercial ou econômico e, de outro, um bem da personalidade assegurado constitucionalmente. É nessa profundeza de análise do conflito de direitos numa interpretação conforme em que as soluções podem divergir. Não busco a interpretação das normas em situações limites. Apenas a análise jurídica das normas em vigor, à luz da CR/88. Penso que essa posição, a médio prazo, ainda, obrigaria o mercado imobiliário a oferecer outros meios alternativos de acesso à moradia (critério metajurídico: social). O tema ainda continua em aberto nas demais instâncias, já que não houve a decisão do STF como matéria de repercussão geral, o que não o impede de nova análise do tema quando oportuno, diante da nova composição dos ministros.

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